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A natureza é uma coisa engracada

Sei que vocês adoram o Diego, mas ele não nasceu o Diego do Respira, ele se tornou - até porque é assim com todos nós, inclusive esse Leo que enverga, mas não quebra, também é novidade, lembra?


Então, dizer que meu amigo é o resultado de um processo foi só a maneira que encontrei de contar uma história que começa com um Diego novinho, e muito do gostoso, que acordava cedo para caçar minhoca na horta e usar como isca no fim do dia.


É que a gente tinha uma amiga, ainda tem, com uma fazenda linda, e enorme, a uma hora de BH. No início do Ensino Médio, Diego e eu íamos à fazenda umas três, quatro vezes ao longo do ano, então a gente pegava desde o frio glacial de julho até o calorzinho gostoso de dezembro.


Apesar da quantidade absurda de quartos disponíveis, Diego e eu ficávamos sempre em um mesmo quarto, o único que não tinha armários, portanto, não tinha cheiro, apesar de que para ele isso pouca importa.


Enfim, nós três éramos muito parceiros, mesmo que, diferente deles, eu não fizesse o estilo farm boy (e usar essa expressão por si só já denota uma certa dose de frescura). Era gostoso brincar de fazenda, mas eu era um impostor, um impostor esforçado, mas ainda assim um impostor.


O engraçado é que eles sabiam e de alguma forma me admiravam por isso. Eles admiravam o meu esforço por estar ali e ser mais um deles pelo simples prazer de estar ali, mesmo que eu precisasse passar protetor o tempo todo, além de uma demão de repelente, ou tomar leite do mercado porque o da vaca parecia milk shake:


- Como assim, milk shake? Leonardo, o leite do mercado também vem da vaca - dizia ele um pouco desapontado, mas nunca impaciente.


Diego nunca foi impaciente comigo.


Sei lá, a sensação que eu tinha é que algumas vezes ele queria que eu fosse tão macho quanto ele.


- Não bebe leite e não toma Catuaba? - disse, rindo - Leonardo, não começa - e encheu meu copo quando sentamos os três ao redor da fogueira que levou horas para ser acesa.


Não tinha nada que deixava Diego mais incrédulo do que eu recusar bebida - e eu nunca gostei de beber: “como assim, não gosta?”, dizia como se eu não pudesse ouvi-lo, “todo mundo gosta de beber”.


E eu bebia. Bebia porque queria ser tão macho quanto ele. Bebia, caçava minhoca na horta para usar como isca, subia e descia cafezal descalço e fingia que não doía.


Mesmo que eu parecesse um personagem na maior parte das vezes, com o tempo aprendi a fazer tudo aquilo tão naturalmente quanto eles.


Eu pescava, e não tem nada mais monótono do que pescar:


- Leonardo - dizia ele sorrindo para mim - Tem coisa melhor do que isso?


Olha, por alto, sem pensar muito, consigo pensar em umas vinte possibilidades mais interessantes do que ficar horas segurando a vara, mas, fazer isso ali, com ele, era genuinamente legal, até que, , de repente, aprendi a pescar.


É engraçado como a gente se adapta. É da natureza humana, questão de sobrevivência: a gente se adapta.


Enfim, teve um dia, de uma determinada viagem, que decidi ser tão macho quanto ele.


Lembro que acordei e saí do quarto sem chinelo (e em nenhum momento do dia pensei “caramba, que pé sujo”, porque aquele pé cascudo, no fim do dia, era como um troféu), tomei leite de vaca, nadei sem passar protetor, tomei só uma ducha no fim dia e não passei repelente depois.


Quando anoiteceu, virei um copo depois do outro, “pode por mais!”, repeti animado.


Diego estava orgulhoso de mim. Cada copo que chegava ao fim ele dizia “viu", então ele colocava o braço ao redor do meu ombro, “todo mundo gosta de beber", e eu fazia uma palhaçada qualquer potencializada pelo álcool.


Claro que não aguentei muito tempo ali, então acabei subindo para o quarto completamente embriagado, com o rosto queimado de sol, o pé preto e a perna vermelha de tanto coçar.


Os dois continuaram bebendo, rindo e comentando o quanto era divertido me ver bêbado. Então, de repente, ouviu-se um estrondo ensurdecedor.


E sem nenhuma diferença de tempo entre eles, um outro ainda maior do que o anterior.


- Tô achando que vem lá de cima... - então um terceiro, mas agora as paredes pareciam tremer em sintonia - Leonardo! - Diego saiu em disparada.


Ele contornou a fogueira, entrou pela cozinha, tateou no escuro em busca do corrimão e subiu em minha direção.


Quando apareceu na porta, Diego me encontrou em pé, sobre a cama, concentrado em algo que parecia se mover sobre mim.


Eu carregava um cabo de enxada com uma bigorna de ferro na ponta; uma marreta improvisada que até então ficava lá embaixo, na entrada da horta.


- Leonardo, o que tá acontecendo?! - perguntou, assustado.


- A natureza é uma coisa engraçada... - respondi girando lentamente a cabeça sobre os ombros.


- É?


- É... - respondi procurando algo na parede ao meu lado - Estou tentando matar uma muriçoca, mas a filha da puta sempre encontra uma forma de sobreviver... - Diego parecia realmente assustado. - ... é impressionante como a sobrevivência é o mais inerente dos instintos.


Então, finalmente, encontrei o que queria. Sorri, levantei a marreta no ar mais uma vez e...


- Calma, sossega - Diego esticou o braço em minha direção, segurou o cabo da enxada e me ajudou a descer dali - Já pegou, ela morreu - disse tirando a marreta de mim.


- Peguei? - perguntei orgulhoso, com um sorriso no rosto.


- Pegou, pegou sim, agora deita - respondeu levantando a coberta para que eu cobrisse as pernas.


- Quero descer - respondi animado e me pus de pé mais uma vez - Quero beber!


- Leco, você não bebe, cara - disse ele me colocando na cama mais uma vez. Aquela foi a primeira vez que Diego me chamou assim.


Então ele pegou o repelente na minha bolsa, apertou o spray nas minhas pernas e espalhou com as mãos na região da canela.


- Você disse que eu peguei, você mentiu pra mim - respondi, puto, querendo levantar de novo.


- Você pegou, Leco - então ele puxou a coberta sobre mim uma última vez - Mas já pensou se a família dela está por perto?


- É? - perguntei, quietinho, sentindo o sono bater.


- Uhum - respondeu ele apagando a luz - Nunca se sabe.


Então ele sorriu e saiu. Com uma marreta na mão.

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