Quando eu morava no São Bento, corria no São Bento, mas agora gosto de correr no Belvedere porque lá a oportunidade de flerte é maior, então começo ali, ao redor da lagoa, e depois vou cortando por dentro do bairro sem nunca seguir o mesmo percurso.
Não sou nenhum maratonista, na verdade, tem pouco tempo que comecei a correr com regularidade - esse Leo que sabe quanto corre e em quanto tempo corre é cria da Bahia, lembra?
Enfim, hoje não consigo viver sem. Como Lucas não me deixa fazer mais do que faço, geralmente fico entre cinco e sete quilômetros, o que geralmente faço entre 28 e 35 minutos, mas nessa última quarta acabei parando bem antes.
E se você leu o post de ontem já deve imaginar porque.
Enfim, eu estava ouvido essa playlist quando entrei na rua da Igreja. Tirando as raras ocasiões onde sou o padre, tenho pavor de Igreja. Tenho um ódio especial em horário de missa porque isso enche a rua de carro e me obriga a puxar a máscara para cima.
Já tentou correr de máscara?
Bem, contornei a paróquia, desci, subi e vou descobrindo novas ruas pelo bairro onde posso baixar a máscara e respirar de novo.
Eventualmente volto em direção à lagoa para dar mais um giro por ali e continuo em direção ao bairro em um sentido ou direção que ainda não fiz.
Depois de algum tempo, entrei em uma daquelas ruas perpendiculares à Paulo Camilo e vi um homem vindo na minha direção lá na frente.
Tínhamos mais ou menos o mesmo tamanho, mas ele era maior, mancava e arrastava o fio do fone de ouvido pelo chão.
Ele parecia sem forças, iria cair a qualquer momento.
Foi aí que o homem se jogou na parte gramada ao redor de uma árvore na calçada. Tirei os fones de ouvido da orelha, subi a máscara e disparei em direção a ele.
- Tudo bem? - perguntei assim que agachei em sua frente.
O som não parecia conseguir sair de seu peito, então ele demorou alguns segundos até dizer:
- Não... Ar... Muita... - disse tentando estender as pernas. - Câimbra.
Eu não sabia muito bem o que fazer, então fiquei ali, vendo aquele homem gordo, suado, sem fôlego e sem conseguir esticar as pernas com tanta atenção que de repente, por um rápido segundo, consegui ver o Paulo dentro dele.
O rosto era maior e mais redondo, tinha pouquíssimo cabelo e as pernas estavam absurdamente contraídas, nunca vi uma câimbra fazer isso, mas, sim, lá no fundo ainda dava para ver o Paulo, aquele menino que entrou no meu carro, me deu um beijo e saiu.
- Você mora perto daqui? - perguntei.
- Sim - assustado, ele não olhava para mim, apenas para as pernas contraídas que pareciam não voltar ao normal por mais força que ele fizesse. - Três quarteirões.
Ele me entregou o telefone que tirou do bolso, disse “amor” e depois “liga... por favor”.
Eu liguei, disse o que aconteceu e ela desligou o telefone antes que eu dissesse onde estávamos, então ela ligou de novo, eu disse e ela chegou realmente muito rápido, imagino que eles morem em um daqueles prédios ao redor da lagoa.
- Lindo, estou tremendo, olha - disse ela se ajoelhando ao lado dele, que continuava parcialmente deitado, de lado, com as pernas cada vez mais esticadas.
A menina de arco continuava exatamente igual tanto tempo depois, já o marido...
Ela disse que Paulo tem “problema na válvula” e não deve nunca ultrapassar um determinado nível de esforço físico.
Ela pediu ajuda para que eu o colocasse dentro do carro (as pernas dele pareciam mortas, nunca vi nada parecido) e eu disse “claro”, mas continuei, “só que ele tem que por a máscara antes”.
- Não acredito, Paulo, saiu sem máscara?! - perguntou, puta.
Eu disse “então dá a sua pra ele”, e ela ficou parada por um segundo, mas eu continuei “não vou segurar ele sem máscara”.
Não sei como consegui tirar aquele mamute do chão. A musculatura de suas pernas estava tão contraída que tinha um enorme buraco em uma de suas coxas, se eu quisesse poderia colocar minha mão dentro.
Paulo não conseguia apoiar os pés no chão, ele literalmente arrastou as pernas pelo asfalto como se elas não funcionassem.
A menina de arco agradeceu, disse que me daria um abraço se pudesse, entrou no carro e partiu.
Eu voltei caminhando em direção ao meu carro lembrando do cara que disse que quebraria minhas pernas se um dia eu voltasse a falar com ele.
Claro que sexualidade é uma coisa muito louca, fluída e impossível de colocar numa caixinha como a gente tende a fazer, mas tive dó dele.
Para algumas pessoas é sempre tão mais difícil do que para outras, né?
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Lembrando que para entender quem são esses personagens que aparecem aqui e as referências que uso, você precisa ler “Respira, Leo: um romance autobiográfico".
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